quinta-feira, 14 de outubro de 2010

COMO REZAR CORRETAMENTE?

O correto é rezar Pai Nosso que está “NO CÉU” ou “NOS CÉUS”? E a Ave-Maria é “CHEIA DE GRAÇA” ou “CHEIA DE GRAÇAS”?

1-      O PAI NOSSO
Pode-se dizer que, com toda a certeza, não há uma forma errada quanto estas duas fórmulas. Os termos “no céu” e “nos céus” são sinônimos.  Porém, a oração original que Mateus nos apresenta é “nos céus[1]”. Vemos essa fórmula também no catecismo nº 2759. Mesmo assim, do nº 2759 até o 2802 vemos a alternância dos dois termos.
Ambos têm o mesmo significado: a contemplação das realidades celestes.
Dizer que temos um Pai que está nos céus é lembrarmos (entre outras coisas) que somos estrangeiros nesta terra. Que “somos cidadãos dos céus” (Fl 3, 20) e por isso devemos buscar “as coisas lá do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus” (Cl 3, 1).

2-      A AVE-MARIA
A oração a Maria tem uma fórmula especifica: Ave Maria cheia “DE GRAÇA”, O Senhor é convosco(Lc 1, 28).
Não é correto dizer cheia de graças pela própria definição de graça. Graça é uma participação na vida divina. Esta participação é plena em Maria, de modo que outra realidade não há em seu coração. Nenhuma outra criatura se fez digna de ser chamada de cheia de graça a não ser Maria.
“Cheia de graça” não é uma saudação, o “Ave” sim é uma saudação. “Cheia de graça” é uma constatação do anjo. Antes mesmo de gerar o filho de Deus Maria já era repleta do favor divino.

3-      A PONTUAÇÃO BÍBLICA
A pontuação bíblica vem a ser a forma que encontramos para manusear a Bíblia com maior facilidade. Nós católicos utilizamos assim:

Vírgula - separa capítulo de versículo.
·         Exemplo: Dn 3, 5 (Livro de Daniel, capítulo 3, versículo 5);
Hífen - equivale ao “até”, inclusive em capítulos diferentes.
·         Exemplo1: Dn 3, 1-5 (Livro de Daniel, capítulo 3, versículos de 1 até o 5);
·         Exemplo2: Dn 3, 1-4, 3 (Livro de Daniel, capítulo 3, versículo um até o capítulo 4, versículo 3);
Ponto - mostra versículos alternados.
·         Exemplo: Dn 3, 1.3.5 (Livro de Daniel, capítulo 3, versículo 1, versículo 3, e o versículo 5);
Ponto e Vírgula - separa referencias diferentes.
·         Exemplo: Dn 3, 1; 4, 3 (Livro de Daniel, capítulo 3, versículo 1 mais o Capítulo 4, versículo 3);
·         Outro exemplo: Lc 1, 28; Zc 2, 14 (Evangelho segundo S. Lucas, capítulo 1, versículo 28 mais o Livro de Zacarias, capítulo 2, versículo 14);
 “s” - mostra a continuação de um versículo.
·         Exemplo: Dn 3,1s (Livro de Daniel, capítulo 3, versículo 1 e 2);
 “ss” - mostra a continuação de dois versículos.
·         Exemplo: Dn 3,1ss (Livro de Daniel, capítulo 3, versículo 1, 2 e 3).

E O QUE SÃO ABREVIAÇÕES BÍBLICAS?
As abreviações bíblicas têm como finalidade, facilitar na hora de especificar o livro sagrado. A maioria das Bíblias, para não dizer todas, possui uma página com todas as abreviações bíblicas, para a consulta de todos os leitores.


[1] Versão Jerusalém, CNBB e conforme o Pater Noster expositio – Comentário ao Pai Nosso – de S. Tomás de Aquino;

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

COMO EXPLICAR O ARREBATAMENTO DE ELIAS?

Atendendo a uma dúvida que na hora eu não pude responder...
“(...) eis que de repente um carro de fogo com cavalos de fogo os separou [Elias e Eliseu] um do outro, e Elias subiu ao céu num turbilhão
(II Reis 2, 11).

Uma das grandes perguntas que me fizeram foi “para onde tinha ido o corpo de Elias”. Confesso que não sabia. Apenas passei o que sempre ouvi: “Elias é um dos poucos que subiu com corpo ao céu, sem morrer”.
Mas aí ficam as dúvidas: como isso ocorre? O que ele respira? Onde exatamente ele está?
                         
Fui atrás e me surpreendi com as respostas que encontrei[1]. Neste texto falarei sobre Elias, mas a conclusão final serve para Henoque[2], o qual também se diz que não morreu.
O texto de II Reis 2, 1ss sugere que Elias tenha sido arrebatado vivo aos céus.
Eis o que se passou no dia em que o Senhor arrebatou Elias ao céu num turbilhão: Elias e Eliseu partiram de Gálgala, e Elias disse a Eliseu: Fica aqui, porque o Senhor me mandou a Betel. Por Deus e por tua vida, respondeu Eliseu, não te deixarei. E desceram a Betel. Os filhos dos profetas, que estavam em Betel, saíram ao encontro de Eliseu e disseram-lhe: Sabes que o Senhor vai tirar hoje o teu amo de sobre a tua cabeça? Sim, eu o sei: calai-vos! Elias disse-lhe: Fica aqui, Eliseu, porque o Senhor manda-me a Jericó. Por Deus e por tua vida, respondeu ele, não te deixarei. E chegaram a Jericó. Os filhos dos profetas que estavam em Jericó foram ter com Eliseu e disseram-lhe: Sabes que o Senhor vai tirar hoje o teu amo de sobre a tua cabeça? Sim, eu o sei. Calai-vos. Elias disse-lhe: Fica aqui, porque o Senhor manda-me ao Jordão. Por Deus e pela tua vida, respondeu Eliseu, não te deixarei. E partiram juntos. Seguiram-nos cinqüenta filhos de profetas os quais pararam ao longe, diante deles, enquanto Elias e Eliseu se detinham à beira do Jordão. Elias tomou o seu manto, dobrou-o e feriu com ele as águas, que se separaram para as duas bandas, de modo que atravessaram ambos a pé enxuto. Tendo passado, Elias disse a Eliseu: Pede-me algo antes que eu seja arrebatado de ti: que posso eu fazer por ti? Eliseu respondeu: Seja-me concedida uma porção dobrada do teu espírito. Pedes uma coisa difícil, replicou Elias. Entretanto, se me vires quando eu for arrebatado de ti, isso te será dado: mas se não me vires, não te será dado. Continuando o seu caminho, entretidos a conversar, eis que de repente um carro de fogo com cavalos de fogo os separou um do outro, e Elias subiu ao céu num turbilhão. Vendo isso, Eliseu exclamou: Meu pai, meu pai! Carro e cavalaria de Israel! E não o viu mais. Tomando então as suas vestes, rasgou-as em duas partes.  Apanhou o manto que Elias deixara cair, e voltando até o Jordão, parou à beira do rio” (II Rs 2, 1-13).

PRIMEIRO PONTO: OS PEDIDOS.
I - Devemos ter em conta que, antes do relato do arrebatamento, Elias pede para morrer:
“(...) e [Elias] andou pelo deserto um dia de caminho. Sentou-se debaixo de um junípero e desejou a morte: Basta, Senhor, disse ele; tirai-me a vida, porque não sou melhor do que meus pais” (I Rs 19, 4).
O verbo lqh = tomar, levar para si, arrebatar. Este fora o pedido de Elias. Não simplesmente pedir para morrer, mas sim pedir para ser levado por/para Deus. Daí a utilização do verbo hebraico “laqah” que designa uma intervenção divina.
Vemos o emprego deste verbo indicando uma libertação no salmo que diz “Do alto estendeu a sua mão e me pegou, e retirou-me das águas profundas” (Sl 17[18], 17). Também podemos vê-lo anunciando uma salvação final e misteriosa no Salmo 48[49], 16 e 72[73], 24[3].
Nesta ocasião Deus não lhe atende, tendo atendido depois.
Novamente atentamos a utilização do verbo “laqah”, que domina a narrativa de II Rs 3-13. Ele designa uma intervenção divina na morte do justo em trechos de vários salmos, mas, aponto de forma especial, o ocorrido com Henoque em Gn 5, 24, e Is 53, 8, em clara referência ao que aconteceria com o messias[4].
II – também é importante perceber o pedido de Eliseu para Elias:
“[Eliseu pede:] Seja-me concedida uma porção dobrada do teu espírito. Pedes uma coisa difícil, replicou Elias. Entretanto, se me vires quando eu for arrebatado de ti, isso te será dado: mas se não me vires, não te será dado (II Rs 2, 9-10).”
Estes termos – pedido e condição – geram um quadro de visão condicionada.
Temos então, juntando o pedido de Elias e o Pedido de Eliseu um indício da morte de Elias e como Eliseu teria visto esta morte do seu mestre, como em uma visão.
Este êxtase profético de Eliseu seria semelhante ao ocorrido com outros homens de Deus, como Miquéias quando viu os céus abertos (cf. I Rs 22, 19-22),... o discípulo de Eliseu, quando percebeu as  montanhas cobertas de cavalos e carros de fogo (cf. II Rs 6,17), .... Isaías, ao contemplar o trono de Deus (cf. Is 6,1-13), ou ainda Amos (cf. Am 9,1).
SEGUNDO PONTO: A TEOFANIA.
O carro de fogo, o vento e outros elementos são representações poéticas da teofania. O fogo é elemento da divindade, como Moisés o descobriu no Horeb, na sarça ardente e inacessível (Ex 3, 2-6; 24, 17; Jz 13, 20). De carros e cavalos nos falam entre outros o Sl 17[18], 11 e 103[104], 3. O vento forte também indica a presença de Deus(Is 30, 27; Ez 1, 4ss).
Teofania são as manifestações de Deus. para todos os povos. Estas manifestações, no Antigo Testamento, ocorrem em fatos da natureza (fogo, fumaça, etc.).
Podemos presumir então que este carro de fogo significa a força divina que atrai Elias.
Estes pontos juntos indicam, provavelmente uma “conversa”, um encontro místico entre Deus e Elias em um lugar separado ou elevado acima da terra.
Vemos este encontro semelhante aos que se deram na vida dos grandes profetas de Israel, seja no monte Sinai (com Moisés, cf. Ex 3; 19; com Elias, cf. II Sm 19),  seja no templo de  Jerusalém (com Isaías, em  Is 6), seja no santuário de  Betel (com Amos, em Am 9,1).
Terminado o êxtase de Elias (que Eliseu, especialmente agraciado por Deus, pode contemplar), aquele profeta teria voltado ao seu estado normal, vindo a morrer pouco depois disso.
TERCEIRO PONTO: A REAÇÃO DE ELISEU.
A morte de Elias parece insinuada, segundo exegetas modernos apontados por D. Estevão, também pelo fato de Eliseu ter rasgado suas vestes e recolhido o manto de Elias, ao verificar o desaparecimento definitivo do mestre (cf. 4 s 2,12s).
A expressão rasgar as vestes é sinal de luto ou tristeza (Gn 37, 29-30.34; Js 7, 6). Era um gesto muito comum nas culturas antigas, quer semíticas, quer greco-latinas. Em Jó, por exemplo, indica o luto pela morte dos filhos e, ao mesmo tempo, a submissão ao destino que se apresenta (Jó 1, 20-21)[5].
QUARTO PONTO: A RESPOSTA DE CRISTO.
Um fato inegável é que era ensinado que Elias havia de voltar antes da vinda do messias. Dentro deste contexto entra o questionamento dos discípulos: “Por que dizem os fariseus e os escribas que primeiro deve voltar Elias?” (Mc 9, 11). É preciso ter conta que os escribas ensinavam isto pois esta foi a conclusão dos profetas vide Mal 3,23s; Eclo 48; I Mac 2, 58.
Nisto a resposta de Jesus é esclarecedora: “Elias deve voltar primeiro e restabelecer tudo em ordem. (...) Mas digo-vos que também Elias já voltou (...)”. Referia-se Jesus a João Batista (Lc 1, 13.17).
É importante ter em conta um fato: no momento da escrita dos Evangelhos os apóstolos e, por conseguinte, a comunidade cristã já tinham consciência que João Batista era o Elias que havia de vir (Mt 11, 14). Mas na época que Jesus caminhou com eles isso era desconhecido, e até estranho. Na cabeça dos três, depois desta visão, o pensamento é claro: se Elias ainda não voltou, logo Jesus não é o Messias esperado. “Já voltou” diz Jesus, e cumpriu sua tarefa de preparar o povo, mas não o reconheceram.
Elias não voltaria por que, de fato, não havia “ido”. Entende-se, não fora arrebatado vivo para junto de Deus.
CONCLUSÃO.
Apesar de o Trecho de II Rs 2 não afirmar a morte de Elias, a construção um tanto misteriosa tornou-se apta a sugerir aos leitores tal conclusão (como, alias, se depreende de passagens bíblicas posteriormente redigidas, como Mal 3,23s; Eclo 48; I Mac 2, 58). Mas os dados apresentados mostram-se favoráveis a conclusão de que Elias teria morrido.
Os profetas não erraram ao dizer que Elias voltaria, apenas não tiveram o entendimento completo da situação. Jesus vem para dar o entendimento da profecia ao afirmar que Elias voltou, afinal João procedia conforme Elias.
Como diz Dom Estevão Bettencourt, o que aconteceu com Elias não se trata de tradição dogmática, mas sim de estudo exegético, a qual não impõe à fé dos cristãos.
Espero ter dado luz, ou uma nova forma de pensar sobre o ocorrido com Elias.
Abraço.


[1] Minha fonte de pesquisa foram os comentários das Bíblias PEREGRINO, JERUSALÉM e escritos de Dom Estêvão Bettencourt;
[2] Henoc;
[3] Nota da Bíblia Peregrino, p. 664;
[4] Spadafora, Pe. Enciclopédia Cattolica. p. 233;
[5] Mazzarolo, Isidoro. Jó, amor e ódio vem do mesmo Deus?. 2ª edição, p. 54;

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

COMO O DEUS DE JESUS PODE TER ROGADO AS PRAGAS E TER PEDIDO PARA UM HOMEM MATAR SEU FILHO?


Esta foi a segunda dúvida no curso de catequese.

A resposta passa, e muito, na definição do termo “a Bíblia é Palavra de Deus Inspirada por Deus”.
Muitos tem um pensamento da Bíblia como palavra de Deus em um sentido literal: A Bíblia teria sido “literalmente” escrita por Deus, palavra por palavra. Podemos quase imaginar o céu se abrindo e a bíblia caindo com zíper e tudo.
Não há nada mais errado.  E esse erro vai, forçosamente, levar a outros, tais como:
- Crer que os autores não são autores, mas espécies de redatores que só escreveram o que Deus “ditou”;
- Crer que Deus escolhe cada termo, cada palavra nos textos, cada pontuação, etc;
- Crer que Deus escolheu a língua na qual o texto foi originalmente escrito;
- Crer que Deus escolhe também as palavras utilizadas em cada tradução (do hebraico para o grego, do grego para o latim, do latim para outras línguas);
-  ...
Para chegar a uma conclusão vamos ver o que diz a Santa Igreja sobre isso:
As coisas reveladas por Deus, contidas e manifestadas na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo. (...) têm Deus por autor (...). Todavia, para escrever os livros sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens na posse das suas faculdades e capacidades, para que, agindo Ele neles e por eles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que Ele queria[1].
Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras[2].
Nada mais claro que isso. Deus é o autor? Sim, mas é Autor no tocante a Inspiração Divina em relação aos seus escritores (inspiração dada pelo Espírito Santo). Foram homens que escreveram as Sagradas Escrituras e esses homens utilizam as suas limitações e os seus conhecimentos. Eles escrevem conforme seu limitado conhecimento de Deus. Esse conhecimento vai aumentando conforme avança a história da salvação.
Por isso são esse homens também autores no referente ao estilo literário, os termos, as palavras, etc.
Por isso quem interpreta a Sagrada Escritura deve atentar não só para a letra escrita. Para saber o que quis Deus comunicar deve atentar aos “gêneros literários”. Por não ser claro o sentido das escrituras, cabe a Igreja esta interpretação.
Dado isto, vamos as dúvidas propriamente ditas...
Sobre o sacrifício de Isaac, temos:

O Senhor disse a Abrão: “Deixa tua terra, tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que eu te mostrar”. (Gn 12, 1)
O Senhor apareceu a Abrão e disse-lhe: “Darei esta terra à tua posteridade.” Abrão edificou um altar ao Senhor, que lhe tinha aparecido”. (Gn 12, 7)
Depois disso, Deus provou Abraão, e disse-lhe: “Abraão!” “Eis-me aqui”, respondeu ele”. (Gn 22, 1)
O anjo do Senhor, porém, gritou-lhe do céu: “Abraão! Abraão!” “Eis-me aqui!”””. (Gn 22, 11)

Em uma primeira leitura vemos Deus testando a fé de Abraão com duas ações diferentes:
1.      Dando a Abraão um filho com sua mulher estéril;
2.      Pedindo que Abraão sacrifique este filho, em nome Dele;
Ocorre que a leitura correta, com a possibilidade que temos (dada a bíblia que usamos, no caso a versão AVE-MARIA) é esta:
Gn 12, 1 – aqui o Senhor Iahweh[3] manda Abraão sair da terra onde vive;
Gn 12, 7 – aqui o Senhor Iahweh[4] promete uma posteridade a Abraão;
OBS: Notem que Senhor (versão AVE-MARIA) equivale a Iahweh (versão Jerusalém).
Gn 22, 1 – aqui Deus pede uma prova a Abraão;
Gn, 22, 11 – aqui o anjo do Senhor Iahweh impede o sacrifício;
OBS: notem que Deus não equivale a Iahweh (Essa referencia [Deus ≠ Iahweh] é específica aos versículos apontados, e não ocorre na Bíblia toda).
Fazendo então uma releitura, percebe-se que não é Iahweh quem pede o sacrifício.
Mas quem pede então?
Ocorre que, quando Abraão é chamado pelo Senhor (Gn 11, 1) ele é um pagão que não conhece Iahweh. Abraão não conhece esse Deus que é amor, mas conhecia as divindades cultuadas no meio do povo pagão em que vivia.
Era uma prática comum Sacrificar a Deus todas as primícias: animais, plantações e filhos também.
Aqui existem duas possibilidades:
1.      Esse Deus ser uma divindade como Moloc[5], conforme Levítico 18, 21:
“Não darás nenhum de teus filhos para ser sacrificado a Moloc; e não profanarás o nome de teu Deus. Eu sou o Senhor”.
2.      Esse Deus ser Iahweh. Aí temos que lembrar que o povo não tinha conhecimento das vontades de Deus. De fato os filhos são uma benção, de Deus, e sua não chegada indica que algo está errado (esterilidade). Quando a mulher engravida isto quer dizer que Deus abençoou o casal. Por isso, na mente deles todas os primogênitos, como todas as primícias, tem que ser dados [sacrificados] a Deus (como agradecimento pela fertilidade do casal). De fato os filhos são de Deus, mas não devem, por isso ser sacrificados, mas sim resgatadas:
Quando o Senhor te houver introduzido na terra dos cananeus, como ele jurou a ti e a teus pais, e te houver dado essa terra, consagrarás ao Senhor todo primogênito; mesmo os primogênitos de teus animais, os machos, serão do Senhor. Entretanto, resgatarás com um cordeiro todo primogênito do jumento; do contrário, quebrar-lhe-ás a nuca. Todo primogênito dos homens entre teus filhos, resgatá-lo-ás igualmente”.
(Exodo 13, 11-13)
Aqui vemos que os primogênitos dos animais são consagrados a Deus (seja por sacrifícios[6], seja entregando-os aos sacerdotes[7]), mas os jumentos não (pois são animais impuros[8]), nem os filhos (por que Deus salva os seus filhos,como fez com Isaac, filho de Abraão).
Na prática Abraão se vê em uma situação inusitadamente difícil. Tem que, de acordo com a prática do povo, sacrificar um filho que ama e uma promessa cumprida por Deus.
Só que Deus não quer o sacrifício dos filhos e Abraão percebe isso, seja de forma implícita, seja de forma explicita.
Como disse a Dei verbum, é preciso entender a mensagem escrita nas escrituras.
Quanto às pragas egípcias...
A seqüência de pragas é:
1.      A água transformada em sangue (Ex 7, 14-25);
2.      As rãs (Ex 8, 1-15[7, 26ss; 8, 1-11]);
3.      Os mosquitos (Ex 8, 16-19[12-15]);
4.      As moscas (Ex 8, 20-32[16-28]);
5.      A peste dos animais (Ex 9, 1-7);
6.      As úlceras (Ex 9, 8-12);
7.      A chuva de pedras (Ex 9, 13-35);
8.      Os gafanhotos (Ex 10, 1-20);
9.      As trevas (Ex 10, 21-29);
10.  A morte dos primogênitos (Ex 11, 1-8; 12, 29-34);
Novamente, temos que entender o que se passa por trás da escrita.
Temos um texto que tem a intenção de mostrar a grandiosidade de Iahweh não só para os israelitas como também frente aos deuses egípcios.
Em síntese, vez que explanar sobre cada uma das pragas necessitaria um trabalho muito longo, vou dividir as “pragas” conforme suas intenções[9].
Inicialmente não temos 10 pragas, mas sim 9 sinais ou prodígios e uma praga. Os prodígios/sinais (Ex 4, 1-9.30; 7, 9) tem a intenção de dar crédito a Moisés junto ao povo e ao Faraó. As “pragas” são destinadas a fazerem o Faraó reconhecer o poder de Iahweh.
Dividindo em blocos temos:
1.      No I e II sinais os magos repetem os prodígios com suas feitiçarias (Ex 7, 20.22; 8, 5-7[2-3]), o que invalida o valor da prova;
2.      No III sinal os magos são incapazes (Ex 8, 17-18[13-14]), e o prodígio de Moisés mostra-se revelador;
3.      No IV e V sinais os magos nada fazem;
4.      No VI sinal os magos são atingidos (Ex 9, 10-11) e retiram-se do resto da narrativa. A partir daqui só teremos como personagens: Moisés, Aarão e o Faraó;
5.      No VII sinal temos a chuva de pedras ou granizo. Uma tempestade de chuva e granizo, com raios e trovões não é fenômeno meteorológico natural no Egito. Esta tempestade é uma teofania (sinal de Deus). A tempestade diz, sem dúvidas, que Iahweh domina no território egípcio;
6.      A partir daqui, no VIII sinal, o Faraó vai cedendo aos poucos. O décimo acontecimento é definitivo: Uma Praga, que é um golpe. Não se trata de um acontecimento natural;
Deve-se, de fato, reter apenas a intenção da narrativa que é fazer brilhar aos olhos dos israelitas e do Faraó a onipotência de Iahweh. O texto, que aos nossos olhos pode mostra um Deus cruel que fere o Egito e ainda, por vezes, endurece o coração do Faraó (Ex 4, 21), para que este não deixe o povo sair (observem a contradição), aos olhos dos israelitas mostra um Deus que além de controlar a natureza em favor do seu povo, ainda é mais poderoso do que os deuses ou o Faraó que os aprisiona.
O livro do Êxodo é uma grande saga explicada no próprio nome que tem no termo grego “eis+hodós” o significado de aprendizagem no caminho[10]. Tendo os fenômenos ou as "pragas" da saída do Egito ocorrido conforme descrito ou de forma diferente, o autor deseja chamar a atenção para a conversão do povo. O sentido do povo esta no Deus que inicialmente eles não conhecem (Ex 4, 29-31) mas que ao conhecerem e lhe prestarem culto (a Páscoa judaica de Ex 12, 1-14) conseguem finalmente sair do Egito. Esta é a teologia por trás do Êxodo.
Deus não mudou. O entendimento dele sim, assim como nós o conhecemos aos poucos, também os hebreus foram descobrindo como Ele era por etapas graduais.
Deus sempre foi e é amor.


[1] Dei Verbum nº 11;
[2] Dei Verbum nº 12;
[3] Termo específico na Bíblia de Jerusalém;
[4] Termo específico na Bíblia de Jerusalém;
[5] Ou outra divindade;
[6] Deuteronômio 15, 19-20;
[7] Números 18, 15-18;
[8] Êxodo 34, 20 c/c Números 18, 15;
[9] Seguirei, resumidamente, as fórmulas apresentadas nas notas das Bíblias PEREGRINO e JERUSALÉM;
[10] Mazzarolo, Isidoro. A Bíblia em suas mãos. 7ª edição, p. 26;

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O QUE TERIA FEITO JESUS NOS 3 DIAS ENTRE SUA MORTE E SUA RESSURREIÇÃO?

Esta foi a primeira dúvida que surgiu na nossa caixinha de dúvidas. Não irei transcrever minha resposta, mas sim encorpá-la. Provavelmente eu faça isso com as outras questões que já surgiram e que ainda surgirão.

Primeiramente vale esclarecer onde Cristo esteve...
"Mas Deus o ressuscitou, rompendo os grilhões da morte, porque não era possível que ela o retivesse em seu poder"
(At 2,24).
Da morte, aqui, é traduzida como Hades[1]. Isto se dá pelo paralelo feito vos versículos 27 e 31. De fato o Hades [no grego] é a região dos mortos. Seu correspondente [no hebraico] é o Xeol [sheol].
Cristo desce até a morada dos mortos. Logo Cristo não desce até o inferno[2], mas sim aos Infernos. Paulo nos diz na carta aos efésios[3]Que significa “subiu”, senão que ele [Cristo] também desceu às profundezas da Terra? O que desceu é também o que subiu acima de todos os céus,(...)” (Ef 4, 9-10).
Esta morada dos mortos é o Seio de Abraão.
Novamente aviso que não estamos falando de lugares físicos, mas é impossível não fazermos paralelos com o mundo que vivemos.
Primeiramente, o termo “Seio de Abraão” designa proximidade com os patriarcas como vemos nestes 2 exemplos:
Josué, filho de Nun, servo do Senhor, morreu com a idade de cento e dez anos.(...)Toda aquela geração se foi também unir a seus pais, e sucedeu-lhe outra que não conhecia o Senhor, nem o que ele tinha feito em favor de Israel.”
(Juízes 2, 8.10)
Aquela geração se foi unir a seus pais [os patriarcas] juntamente com Josué que já havia morrido.
“Quando eu [Jacó] me tiver deitado com meus pais[morrido], levar-me-ás para fora do Egito e me enterrarás junto deles em seu túmulo.” José respondeu: “Farei como dizes.”(...)”
(Genesis 15, 15)
Novamente vemos este paralelo pois Jacó equipara morrer a deitar com os pais [patriarcas].
Esta imagem do estar com os Pais, ou no Seio de Abraão indica a proximidade de Abraão com o Messias mostrado por Mateus:
“Por isso, eu vos declaro que multidões virão do Oriente e do Ocidente e se assentarão no Reino dos céus com Abraão, Isaac e Jacó(...)”.
(Mateus 8, 11ss)
Notem que este lugar não é o paraíso para o qual aponta Jesus no diálogo com o Ladrão na cruz (Lc 23, 43). Tanto o homem rico quanto o pobre Lázaro estariam em um mesmo “lugar”, porém separados por um grande abismo (Lc 16, 26), que simboliza, para eleitos e condenados, a impossibilidade de modificar o próprio destino.

Quem Cristo encontra lá?
De fato, como mostrei, na mansão dos mortos estão todos os que morreram, sejam justos, sejam maus (Salmo 6, 6 c/c 89[88], 49). Todos, que morreram na condição do pecado original [Resquício de adão], estão lá, privados da visão de Deus.
Não há possibilidade de comunhão com Deus para a geração de Adão. Por isso, mesmo nenhum dos santos que haviam morrido (Ex. Moisés, Abraão, Noé, David etc.) podiam ter entrado no céu, porque o pecado de Adão ainda não fora remido. Os justos esperavam pela redenção num lugar onde não sofriam nem gozavam ainda da visão de Deus.

O que Cristo faz lá?
Lá ele liberta estes justos da privação da presença de Deus e prega aos incrédulos.
“O Cristo morto, em sua alma unida à sua pessoa divina, desceu à Morada dos Mortos. Abriu as portas do Céu aos justos que o haviam precedido”[4].
De fato “foi o Evangelho pregado também aos mortos” (I Pd 4, 6), e, entre os mortos, também aos injustos (I Pd 3, 18-19).
Logo, Cristo vai à mansão dos mortos para que, literalmente, “os mortos ouçam a voz do Filho de Deus; e que ouvindo vivam” (Jo 5, 25). Apesar de ser esta passagem colocada em um contexto não de mortos físicos, mas de mortos espirituais, podemos traçar um paralelo com Jo 11, 25-26.43-44:
Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá. Crês nisto? (...)exclamou em alta voz: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu(...).

O catecismo no seu número 635 nos remeta a Liturgia das horas do Grande Sábado, o Sábado Santo, véspera da Páscoa. Ele diz:
Um grande silêncio reina hoje na terra, um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio porque o Rei dorme. A terra tremeu e acalmou-se porque Deus adormeceu na carne e foi acordar os que dormiam desde séculos... Ele vai procurar Adão, nosso primeiro Pai, a ovelha perdida. Quer ir visitar todos os que se assentaram nas trevas e à sombra da morte. Vai libertar de suas dores aqueles dos quais é filho e para os quais é Deus: Adão acorrentado e Eva com ele cativa. "Eu sou teu Deus, e por causa de ti me tornei teu filho. Levanta-te, tu que dormes, pois não te criei para que fiques prisioneiro do Inferno: Levanta-te dentre os mortos, eu sou a Vida dos mortos.[5]"

Quando isto ocorre (em qual dos 3 dias)?
Temos que perceber que fora da nossa vida corporal não há tempo cronológico.
Logo Cristo morre estendendo sua obra redentora aos outrora falecidos.
Mateus relata no Evangelho que, logo após a morte de Jesus “Os sepulcros se abriram e os corpos de muitos justos ressuscitaram” (cf. Mt 27, 50.52).
Cristo, então, resgata os mortos e, abrindo as portas do céu, nos entroniza no Paraíso.
“Está preparado o trono dos querubins, prontos e a postos os mensageiros, construído o leito nupcial, preparado o banquete, as mansões e os tabernáculos eternos adornados, abertos os tesouros de todos os bens e o reino dos céus preparado para ti desde toda a eternidade”[6].


[1] Tradução da Bíblia de Jerusalém;
[2] Fato que nem poderia ocorrer, vide a palestra “céu, inferno e purgatório”;
[3] Tradução da Bíblia de Jerusalém;
[4] Catecismo da Igreja Católica 637;
[5] Uma antiga homilia, de autor grego desconhecido;
[6] Ibid.;