Esta foi a segunda dúvida no curso de catequese.
A resposta passa, e muito, na definição do termo “a Bíblia é Palavra de Deus Inspirada por Deus”.
Muitos tem um pensamento da Bíblia como palavra de Deus em um sentido literal: A Bíblia teria sido “literalmente” escrita por Deus, palavra por palavra. Podemos quase imaginar o céu se abrindo e a bíblia caindo com zíper e tudo.
Não há nada mais errado. E esse erro vai, forçosamente, levar a outros, tais como:
- Crer que os autores não são autores, mas espécies de redatores que só escreveram o que Deus “ditou”;
- Crer que Deus escolhe cada termo, cada palavra nos textos, cada pontuação, etc;
- Crer que Deus escolheu a língua na qual o texto foi originalmente escrito;
- Crer que Deus escolhe também as palavras utilizadas em cada tradução (do hebraico para o grego, do grego para o latim, do latim para outras línguas);
- ...
Para chegar a uma conclusão vamos ver o que diz a Santa Igreja sobre isso:
As coisas reveladas por Deus, contidas e manifestadas na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo. (...) têm Deus por autor (...). Todavia, para escrever os livros sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens na posse das suas faculdades e capacidades, para que, agindo Ele neles e por eles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que Ele queria[1].
Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras[2].
Nada mais claro que isso. Deus é o autor? Sim, mas é Autor no tocante a Inspiração Divina em relação aos seus escritores (inspiração dada pelo Espírito Santo). Foram homens que escreveram as Sagradas Escrituras e esses homens utilizam as suas limitações e os seus conhecimentos. Eles escrevem conforme seu limitado conhecimento de Deus. Esse conhecimento vai aumentando conforme avança a história da salvação.
Por isso são esse homens também autores no referente ao estilo literário, os termos, as palavras, etc.
Por isso quem interpreta a Sagrada Escritura deve atentar não só para a letra escrita. Para saber o que quis Deus comunicar deve atentar aos “gêneros literários”. Por não ser claro o sentido das escrituras, cabe a Igreja esta interpretação.
Dado isto, vamos as dúvidas propriamente ditas...
Sobre o sacrifício de Isaac, temos:
“O Senhor disse a Abrão: “Deixa tua terra, tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que eu te mostrar”. (Gn 12, 1)
“O Senhor apareceu a Abrão e disse-lhe: “Darei esta terra à tua posteridade.” Abrão edificou um altar ao Senhor, que lhe tinha aparecido”. (Gn 12, 7)
“Depois disso, Deus provou Abraão, e disse-lhe: “Abraão!” “Eis-me aqui”, respondeu ele”. (Gn 22, 1)
“O anjo do Senhor, porém, gritou-lhe do céu: “Abraão! Abraão!” “Eis-me aqui!”””. (Gn 22, 11)
Em uma primeira leitura vemos Deus testando a fé de Abraão com duas ações diferentes:
1. Dando a Abraão um filho com sua mulher estéril;
2. Pedindo que Abraão sacrifique este filho, em nome Dele;
Ocorre que a leitura correta, com a possibilidade que temos (dada a bíblia que usamos, no caso a versão AVE-MARIA) é esta:
Gn 12, 1 – aqui o Senhor Iahweh[3] manda Abraão sair da terra onde vive;
Gn 12, 7 – aqui o Senhor Iahweh[4] promete uma posteridade a Abraão;
OBS: Notem que Senhor (versão AVE-MARIA) equivale a Iahweh (versão Jerusalém).
Gn 22, 1 – aqui Deus pede uma prova a Abraão;
Gn, 22, 11 – aqui o anjo do Senhor Iahweh impede o sacrifício;
OBS: notem que Deus não equivale a Iahweh (Essa referencia [Deus ≠ Iahweh] é específica aos versículos apontados, e não ocorre na Bíblia toda).
Fazendo então uma releitura, percebe-se que não é Iahweh quem pede o sacrifício.
Mas quem pede então?
Ocorre que, quando Abraão é chamado pelo Senhor (Gn 11, 1) ele é um pagão que não conhece Iahweh. Abraão não conhece esse Deus que é amor, mas conhecia as divindades cultuadas no meio do povo pagão em que vivia.
Era uma prática comum Sacrificar a Deus todas as primícias: animais, plantações e filhos também.
Aqui existem duas possibilidades:
1. Esse Deus ser uma divindade como Moloc[5], conforme Levítico 18, 21:
“Não darás nenhum de teus filhos para ser sacrificado a Moloc; e não profanarás o nome de teu Deus. Eu sou o Senhor”.
2. Esse Deus ser Iahweh. Aí temos que lembrar que o povo não tinha conhecimento das vontades de Deus. De fato os filhos são uma benção, de Deus, e sua não chegada indica que algo está errado (esterilidade). Quando a mulher engravida isto quer dizer que Deus abençoou o casal. Por isso, na mente deles todas os primogênitos, como todas as primícias, tem que ser dados [sacrificados] a Deus (como agradecimento pela fertilidade do casal). De fato os filhos são de Deus, mas não devem, por isso ser sacrificados, mas sim resgatadas:
“Quando o Senhor te houver introduzido na terra dos cananeus, como ele jurou a ti e a teus pais, e te houver dado essa terra, consagrarás ao Senhor todo primogênito; mesmo os primogênitos de teus animais, os machos, serão do Senhor. Entretanto, resgatarás com um cordeiro todo primogênito do jumento; do contrário, quebrar-lhe-ás a nuca. Todo primogênito dos homens entre teus filhos, resgatá-lo-ás igualmente”.
(Exodo 13, 11-13)
Aqui vemos que os primogênitos dos animais são consagrados a Deus (seja por sacrifícios[6], seja entregando-os aos sacerdotes[7]), mas os jumentos não (pois são animais impuros[8]), nem os filhos (por que Deus salva os seus filhos,como fez com Isaac, filho de Abraão).
Na prática Abraão se vê em uma situação inusitadamente difícil. Tem que, de acordo com a prática do povo, sacrificar um filho que ama e uma promessa cumprida por Deus.
Só que Deus não quer o sacrifício dos filhos e Abraão percebe isso, seja de forma implícita, seja de forma explicita.
Como disse a Dei verbum, é preciso entender a mensagem escrita nas escrituras.
Quanto às pragas egípcias...
A seqüência de pragas é:
1. A água transformada em sangue (Ex 7, 14-25);
2. As rãs (Ex 8, 1-15[7, 26ss; 8, 1-11]);
3. Os mosquitos (Ex 8, 16-19[12-15]);
4. As moscas (Ex 8, 20-32[16-28]);
5. A peste dos animais (Ex 9, 1-7);
6. As úlceras (Ex 9, 8-12);
7. A chuva de pedras (Ex 9, 13-35);
8. Os gafanhotos (Ex 10, 1-20);
9. As trevas (Ex 10, 21-29);
10. A morte dos primogênitos (Ex 11, 1-8; 12, 29-34);
Novamente, temos que entender o que se passa por trás da escrita.
Temos um texto que tem a intenção de mostrar a grandiosidade de Iahweh não só para os israelitas como também frente aos deuses egípcios.
Em síntese, vez que explanar sobre cada uma das pragas necessitaria um trabalho muito longo, vou dividir as “pragas” conforme suas intenções[9].
Inicialmente não temos 10 pragas, mas sim 9 sinais ou prodígios e uma praga. Os prodígios/sinais (Ex 4, 1-9.30; 7, 9) tem a intenção de dar crédito a Moisés junto ao povo e ao Faraó. As “pragas” são destinadas a fazerem o Faraó reconhecer o poder de Iahweh.
Dividindo em blocos temos:
1. No I e II sinais os magos repetem os prodígios com suas feitiçarias (Ex 7, 20.22; 8, 5-7[2-3]), o que invalida o valor da prova;
2. No III sinal os magos são incapazes (Ex 8, 17-18[13-14]), e o prodígio de Moisés mostra-se revelador;
3. No IV e V sinais os magos nada fazem;
4. No VI sinal os magos são atingidos (Ex 9, 10-11) e retiram-se do resto da narrativa. A partir daqui só teremos como personagens: Moisés, Aarão e o Faraó;
5. No VII sinal temos a chuva de pedras ou granizo. Uma tempestade de chuva e granizo, com raios e trovões não é fenômeno meteorológico natural no Egito. Esta tempestade é uma teofania (sinal de Deus). A tempestade diz, sem dúvidas, que Iahweh domina no território egípcio;
6. A partir daqui, no VIII sinal, o Faraó vai cedendo aos poucos. O décimo acontecimento é definitivo: Uma Praga, que é um golpe. Não se trata de um acontecimento natural;
Deve-se, de fato, reter apenas a intenção da narrativa que é fazer brilhar aos olhos dos israelitas e do Faraó a onipotência de Iahweh. O texto, que aos nossos olhos pode mostra um Deus cruel que fere o Egito e ainda, por vezes, endurece o coração do Faraó (Ex 4, 21), para que este não deixe o povo sair (observem a contradição), aos olhos dos israelitas mostra um Deus que além de controlar a natureza em favor do seu povo, ainda é mais poderoso do que os deuses ou o Faraó que os aprisiona.
O livro do Êxodo é uma grande saga explicada no próprio nome que tem no termo grego “eis+hodós” o significado de aprendizagem no caminho[10]. Tendo os fenômenos ou as "pragas" da saída do Egito ocorrido conforme descrito ou de forma diferente, o autor deseja chamar a atenção para a conversão do povo. O sentido do povo esta no Deus que inicialmente eles não conhecem (Ex 4, 29-31) mas que ao conhecerem e lhe prestarem culto (a Páscoa judaica de Ex 12, 1-14) conseguem finalmente sair do Egito. Esta é a teologia por trás do Êxodo.
Deus não mudou. O entendimento dele sim, assim como nós o conhecemos aos poucos, também os hebreus foram descobrindo como Ele era por etapas graduais.
Deus sempre foi e é amor.
[1] Dei Verbum nº 11;
[2] Dei Verbum nº 12;
[3] Termo específico na Bíblia de Jerusalém;
[4] Termo específico na Bíblia de Jerusalém;
[5] Ou outra divindade;
[6] Deuteronômio 15, 19-20;
[7] Números 18, 15-18;
[8] Êxodo 34, 20 c/c Números 18, 15;
[9] Seguirei, resumidamente, as fórmulas apresentadas nas notas das Bíblias PEREGRINO e JERUSALÉM;
[10] Mazzarolo, Isidoro. A Bíblia em suas mãos. 7ª edição, p. 26;